20.12.06

A praça achava-se vazia, rarefeita. Via-se apenas mansa, por cima do banco, uma mão menina. Estávamos todos narrando estórias, uns para os outros, como em roda se faz; e era noite, com uma convicção estátil e preta. A lua sobrepujada e reflexiosa fazia-nos compreender os rostos por detrás da noite, éramos 5.Vitor tinha olhos pequenos e sombreados e uma boca tomada por dentes branquíssimos. Vestia pernas compridas e peludas, e diziam ser ele o mais homem dos meninos. Yuri era atarracado como um urso sem-jeito, silencioso tanto quanto ameno. Era bonito à maneira dos índios, hermético, encerrado dentro da pele grossa de fibra escura. Ricardo era magro e esguio como um velocista, tinha o sono inscrito nos pelos, queria-se inerte de certa forma, com olhos verdes e vítreos, labirintantes. Pedro era um rapazão sensível. Nadador nato, com gomos de músculos nascentes no estômago. Era um jovem futurista anônimo, cheio de idéias e sonhos.

Éramos 5. Mas se descrever-me fosse, faria injustiça. Diria-me de um lado cancro; do outro príncipe. Não haveria realismo nenhum em tentar descrever-me. Aos colegas que me faziam sala ao ar livre, já os pintei à minha maneira vaga e juvenil. Permita apenas que eu suma no escuro.A mão menina não tínhamos ninguém. Era do outro lado que se pousava a mansidão feminina. Da que víamos costas apenas; costas, cabelos e mãos. Uma só mão, clarifico. A outra ocultada e acudida pelo corpo pequeno. Era loira de uma loiridão mesquinha e injusta, mas não nos fazia importância.Contos eram nossos acontecimentos sem substância; contávamos. Desimportados da sexta figura. Acabrunhados pela própria morbidez de nossa existência recém-descoberta. Jovens da maneira mais estúpida de que se poderia compilar a juventude documentada. Filosóficos e rebuscados como quereríamos ser naturalmente.

Ricardo terminara uma estória, rica nos dados, mas sem fantasia. Era um rapaz com vontades, enraizado no tempo, em seu tempo o que quero dizer. Em pouco estávamos todos repletos de tédio; ainda que repletos de fato, em nossa falta do que sofrer por. Inventávamos. Uns aos outros.Yuri sugeriu algo mágico. Em um realismo revisado, mostrava-nos era o mundo visto do foco transeunte de um louco. Estória viva de fumaça humana, obliterada, sobreposta, anacrônica, delineada sobre cores. Sentimentos renovados, redescobertos, reinventados, era coisa demais para todos. Ninguém sabia viver aquilo. Aquilo não servia; era inexistente demais para existir.Vitor não queria contar nenhuma das suas, estava ouvidos. Distraí-me na mão da moça que já se havia movido, predisposta e redisposta a descansar o crânio adornado em liso loiro.
Sugeri que Pedro...

...Então começou:

- Essa estória é de estar na praça com mulher sombria. - achamos graça por dentro.

- Éramos 5. - decidira começar do início, descrevendo todos do seu jeito.

- Éramos 5 e estávamos assim, sentados, ensimesmando o universo ao redor. Éramos umbigos de sonhos e nuvens.

- Umbigo não é boa palavra literária, lembra Quintana? - resolvi me meter sem qualquer.

- Lembro sim, caso é que minha literatura tem meu nome. - respondeu grave. Calei.

- Umbigos era o que éramos. Sentados. E havia esse sexto umbigo loiro e menina, posto em um banco e dando as costas para os demais.

- Umbigos não têm costas! - meteu-se Yuri sobre-se-rindo.

- Não é caso para se discutir as costas dos umbigos. Metonímia minha, de livre-escolha, e não me encham a merda do saco! - Irritou-se.

Vitor ria sozinho de assunto dentro da própria cabeça. Era desses que contavam piadas para si em silêncio. Que riam de dentro do banheiro e assustavam os pais. Gostava bastante eu dele. Sempre moço, com aquele riso aceso e melancólico dos jovens solitários. Era um amigo de se fazer chaveiro e guardar. Amigo de algibeira. De se pensar sozinho sobre, e ficar satisfeito com as possibilidades humanas no mundo.

Acontecia que o umbigo loiro levantara-se e já começava a dançar sozinho, noturnamente e sem música. Ela, de quem não víamos o rosto, decidira voar tocando o chão. Aquilo que se armava ali era o impossível desejado, estávamos débeis, suspensas as bocas. Voava a maldita, volitante como um sopro! Assim deixada por nós, ousava o espaço com o corpo. Estendendo-se muito comprida ao longo do nada escuro. Havia uma luz apenas, sem foco, proposta do alto, branca e pouca. Era linda a moça. A mais linda das mulheres sem rosto. E dançava, leve-voante, sobre os pés descalços e pequenos.

- O umbigo era uma moça jovem, que sabia dançar de costas para o mundo. - sugeriu Pedro.

- E o mundo, que até então eram 5 moços, não sabia dar as costas para ela. - quis Ricardo.

Vitor saiu da própria cabeça. Yuri e Ricardo tocavam ombros.

A moça mudou-se três passos para fora da semi-sombra das árvores, e de lá surgia então o umbigo. Redondo, circunfeito e fundo. Faríamos natação naquele umbigo se pudéssemos. Ora, como não podíamos! Contamináramo-la apenas vendo, tocar saberíamos nunca. Ela era mais uma de nossas estórias bonitas e intocáveis, muitíssimo oca. Tocássemo-la e houvesse corpo, não haveria o que mais contar para si. A realidade sendo dura demais deve ser combatida. Mas algo que saiba dançar em despeito de música, e voar carente de asas, deve ser deixada assim, sem substância alguma, para se ver descrente ou sobrecrente.- Foi que abdicou do chão e passou a dançar nas folhagens das árvores. - Pedro decidiu.

E ela, que até então guiava-nos a estória, obedeceu. Anteposta, suspendida mais de metro, tocava as folhas nos dedos e sorria sem rosto. Abraçavamo-la distantes e diminutos, coagidos em uma mesma existência fantástica. Um mesmo motivo. Não haveria por que estar lá sozinha, loira e soturna senão para nós. Era toda para nós. Existia de fato? Toda assim, extermínio-menina de nossa descrença. Brilhinho cênico em nosso despropósito. Dáva-nos certezas das que não existem. Era o nosso ímpeto masturbatório sacralizado. Éramos 5. Todos olhos, ombros, pernas, dedos, unhas; obliterados, oníricos, moleques perdidos. Daríamos todos os livros dos grandes homens por uma mulher que voasse. Por uma mulher apenas, assim fosse. Que fosse dançar o silêncio em nossos braços. Que nos chamasse poetas, contistas, literatos. Que achasse bonito ter sido inventada para nós. E que soubesse dançar em despeito do mundo.

Sentada de costas para nós, expunha uma mão apenas. Nós, descalços, descansando sobre a palma branca contávamos estórias.