4.9.05

Matilde

- Ora, pode passar moça, problema não.
-Eu é que já comi um, direito seu estar.
-Tem importância não, comi eu mesmo um; gorapouco!
-Sobra quê? Damas na frente?
-É seja assim; damas na frente.

Largaram um ou dois pares de sorrisos, intermitentes, por entre as pausas de palavras. O menino vira apenas uma ansiedade de menina, e um passo curto qual pedisse crepe o quão logo. Qual pedisse fim àquela fila. Entendeu que talvez não quisesse tanto quanto ela a que consentiu que pedisse antes. Havia alguma coisa naquela espera; gostaria, fosse um segundo, querer tanto alguma coisa assim; querer com os dentes, com os pés, com os braços. Querer um crepe, assim, com o corpo todo.

- Seu amigo me disse, Biologia foi o que fez?
- Três anos até trocar os bichos pelas notas.
- Mesmo? (sabe... são vivas também...) De onde saem suas notas?
- De uma flauta.
- Olha moça. Acreditar vai não. Mas de uma flauta saem as minhas também.

Fez como que algumas interjeições seguidas de pequenas interrogações, mas logo desistiu. Sabia, assim como ela, que música alguma faria sentido se não repousasse, vez ou outra, sobre o silêncio. E respeitou. Entendeu ser coisa de uma noite meio cinza, achar alguém que distraísse a vida. Que valesse à pena ser sério, ser tímido, ou frívolo, o que fosse.

- Estive mesmo hoje a ver a OSESP, tocar Béla Bartók.
- Estava lá eu também!

E foi, cada qual descansar à sua mesa. Afinal, nenhum espírito agüenta tanta coincidência, sem nem minuto pra fingir sossego. Escutaram as mesmas músicas naquela tarde, e em todo aquele tamanho elegante da Sala São Paulo cada um tinha um lugar marcado, um lugar seu. Pequenas entidades vivas, decididas a se deixar levar por aquele mundo que, do nada invisível, tomava a forma do ar quando os arcos, e as baquetas, e as mãos nuas, e os sopros decidiam contar histórias de sons que liam nos papeis cheios de notas.

-Sei que seus amigos são muito melhores menino. Mas se quiser ficar um pouco com a gente pode vir sim!
-Vou lá agora então; já vou.

E ouviu histórias de pessoas que entendiam a vida de maneira bonita e rara. Coisas sobre Palíndromos e a beleza que tem brincar com eles. Aquilo que corre pra trás. Escutara em algum lugar, mas não lembrava aonde. Lembrava apenas que achara bonito demais, e tão logo já guardava na memória das coisas que amava sem motivo. Mas que amava com o coração todo.

Viu que começava a querer de verdade; bem parecido com o desejo de crepe da menina.Queria saber o que ela e a flauta dela tinham a dizer sobre música. E aproveitou um segundo para contrapor nas palavras:

- Vou pegar a câmera lá no apartamento...
- ...está bem junto da flauta?
- Está sim!
-Acompanho então.

Montada a flauta, os dedos e os lábios da moça pressentiram erro. Mal sabia ela, que quem ouvia não se importava com os erros, queria apenas que tocasse com a mesma alegria bonita que a impedia de ser qualquer. Tocava o erudito.

- Será que não é ruim, a essa hora tocar no apartamento?
- Mas lá embaixo o som é tão alto, e não é tão bonito...

Escutou então um tanto mais antes de tocar alguma coisa. E disse da cerveja porque era mais fácil, mas não sabia se era mesmo ela que causava dormência quando tentava encontrar posição pelo bocal da flauta. E já tocava com os erros como sendo íntimos:

coisa de se consertar eu sei; coisa de se concertar...

Não havia orgulho, não era isso. Era só uma felicidadezinha bem fina, bem leve, em imaginar que aquele som imperfeito vinha mesmo do seu esforço.

- O que você fez com ela? Ta mais leve...
- ...hum...não sei não...

E colocaram a flauta pra dormir. Tinha nome, e tinha explicação. Dorothy o nome dela.

- ...tinha que ser Dó alguma coisa...Sabe? Por ser afinada em Dó.

E o menino sorriu por dentro sem saber se mostrava que sorria.

...

- ...é que o céu dessa cidade é mesmo cinza. Olha, não tem estrela alguma! - o menino lamentava.

E logo depois que ela se foi, reparou uma estrela de vidro girando na janela do apartamento onde estiveram. E teve vontade de gritar, mas pra quem? Não era tão seguro a ponto de ignorar o mundo e só gritar por alegrar-se de uma descoberta; sentiu-se menor por isso.

Era incrível como girava aquela estrela, e como refratava a luz do apartamento. Era impossível estar ali. Era perfeito e era triste. Passara a maior parte dos dias olhando pro céu como a implorar; ou para o chão num lamento infinito...

e admitiu, ressentido de um tempo perdido,
que as estrelas também brincavam na altura dos seus olhos.

11 Comments:

Anonymous Anônimo said...

........ainda me incomoda mas agora é diferente........

9:05 PM  
Blogger Nícolas Brandão Silva said...

....uma anônima....

de que adianta?

9:37 AM  
Anonymous Anônimo said...

Condicional...porque é lindo

Beijos qrido...

12:43 PM  
Blogger Molly said...

ora, não é bonito? quando duas estrelas se encontram, eu digo...

4:53 PM  
Blogger Nícolas Brandão Silva said...

bonito é quando se dão conta...

2:57 PM  
Anonymous Anônimo said...

Sabe... Mais tarde eu vi aquela estrela de lá de baixo, do lado da piscina.

Eu olhei pra ela, ela olhou pra mim, e uma sorriu pra outra, "knowingly" -- não acho termo na nossa pra isso.

3:02 PM  
Blogger Pedro Pimenta said...

Onde se escondem...

7:45 AM  
Anonymous Anônimo said...

catinguei no mangue
embora a demora e o sangue.

7:02 AM  
Anonymous Anônimo said...

sinto falta dos churros.

e das baionetas.

7:06 AM  
Anonymous Anônimo said...

Onde estão os super vaporizadores dos filmes americanos agora que minha família se afoga num bueiro?

...sem falar no jazz...

7:10 AM  
Blogger Nícolas Brandão Silva said...

onde se escondem...

7:12 AM  

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