11.8.11

Febre - Parte I




I


Foi no meio de uma coxinha, observando o movimento da rua, que decidiu que compraria uma arma.

Já fazia alguns dias que o mundo o assustava e era hora de tomar uma providência. Estava certo de que noutro dia um homem o havia seguido por pelo menos 3 ruas no caminho do trabalho e, desde então, passou a vê-lo dobrar as esquinas. Via-o sem muita precisão, mas com uma certeza íntima quase irrefutável. Certificou-se, no mesmo dia, de que todos no trabalho soubessem do ocorrido, tomando especial cuidado ao explicar para os seguranças as características fisionômicas do perseguidor. Não pudera, no entanto, captar os mínimos detalhes, visto que na hora lhe pareceu demasiado perigoso e até mesmo inadequado fixar os olhos sobre aquele que o perseguia. Afinal, fazê-lo poderia instigar a máxima violência do acossador! Incomodava-lhe, ainda mais, a vaga, porém real possibilidade de estar enganado, e ter de passar pelo vexame de interpelar um sujeito que dividisse com ele apenas uma rota. Por isso, espiou uma, talvez duas vezes com a típica vergonha de quem desconfia e conseguiu guardar na memória apenas a cor da pele e a barba assimétrica do suspeito. Desse primeiro contato, produziu hipóteses sobre a idade e a altura do rapaz, concebendo aos poucos um retrato honesto, que conjugasse, em justa medida, o que sabia e o que esperava do criminoso. Aprendera, ainda pequeno, o conforto de haver um remédio para cada enfermidade. Por isso queria uma boa arma, condizente com sua atual necessidade.

Aproveitou um desconforto repentino para sair mais cedo do trabalho e encontrar a loja ainda aberta. Ficava a menos de 3 quarteirões do escritório, o que o deixava ainda mais seguro. Caso precisasse retornar ao estabelecimento, não teria dificuldade alguma, e era normal que fosse orientado mais de uma vez sobre a novidade que o protegeria para toda vida. A ansiedade era muita e a cabeça fervia aparentemente sem enfermidade; por isso já estava imóvel a quase 10 minutos de frente para a porta de vidro. Tamanho era o abatimento no rosto e o suor supurado, que parecia se tratar de um maratonista derrotado. Havia mesmo todo um percurso e, sobre o caminho superado, o esboço de um sentimento de derrota. Pensou rapidamente no que havia construído até então e a verdade pesou sobre seus ombros como uma criança obesa e inquieta. Buscou se acalmar, afinal, eram sentimentos absolutamente normais. Não é todo dia que se muda uma vida com uma decisão acertada. Na verdade, muito pelo contrário, o que sentia todos esses anos eram suas decisões o levando a lugar nenhum. Estava na hora de mudar essa situação deprimente: tomar as rédeas da própria vida e, de uma vez por todas, cuidar do próprio caminho. Concebia cada ideia menos para refletir e mais para sentir seu efeito agradável. A estratégia parecia funcionar. O fervor de há pouco, devastador e incontrolável, era agora uma espécie de febre muito confortável que o fazia sorrir admirado para o nada.

O sorriso foi a primeira coisa que o lojista notou quando abriu a porta, depois correu os olhos pela barriga inchada, o suor dispersado, e, por fim, a maleta que pendia de um dos braços. Impaciente em vê-lo parado por tanto tempo encarando a porta, pediu polidamente que entrasse para ver os produtos de perto. Na loja foi recebido pelo ar condicionado que parecia mais ar do que o ar da rua. Achou engraçado sentir-se tão confortável quando tudo que se via em volta era mortal. Tão engraçado, na verdade, que quando pensou nisso acabou deixando sair um riso agudo e patético, algo como um guincho, que serviu como um atestado de amadorismo diante do olhar atento do vendedor. Retornando para trás do balcão, o comerciante não quis rodeios:

- Está sendo ameaçado?

- Sim, de certa forma. Você deduziu só de olhar pra mim?

- Todo mundo que vem aqui ou está se sentindo ameaçado ou quer ameaçar alguém.

- É, você tem razão. - respondeu sem disfarçar a tristeza, ao mesmo tempo em que corava.

- Eu recomendaria uma pistola de baixo calibre, de manejo simples, com certeza você nunca atirou na vida.

- Pera aí, tudo isso você lê na minha cara? - sentia-se vulnerável tanto quanto intrigado, como uma debutante que houvesse sido decifrada pelo primeiro amor no decorrer de uma valsa.

- Não é nada pessoal, não sou especialista em gente. Eu entendo mesmo é de armas, estou no ramo faz muito tempo. Entendendo das armas, eu aprendo sobre meu público, sabe? Não sei dizer se você já pescou na vida, ou se já quebrou um dente. Eu vejo em você só o que as armas me ensinaram.

- Qual pistola você recomenda? - tentou desajeitadamente tomar o controle daquele diálogo humilhante.

- Eu imagino que você não queira gastar muito, então não vou oferecer uma Glock, tem uma pistola brasileira, 9mm, da Taurus, é essa daqui, PT 92 AFS. Fácil de usar, é boa, nunca emperrou comigo. - põe e tira a munição didaticamente, depois oferece para segurar.

- Tudo bem, pode ser então. Eu não entendo mesmo, será que eu posso confiar em você? - segura, a arma treme na mão, devolve rapidademente.

- Olha, você tá aqui, não entende nada do assunto, e precisa de uma arma por algum motivo que não me interessa. Acho que você veio pra confiar em mim.

- Meu Deus, com você não tem mais ou menos. - lamentou-se forçando um sorriso.

- Eu vendo armas meu amigo. Arma atira e mata, não tem mais ou menos. Você vai precisar de munição, vou te dar um pouco, se precisar de mais você volta aqui. - sugeriu, esboçando uma irritação controlada.

- Tá bem.

- Eu já sei a resposta, mas vou perguntar mesmo assim, você não tem documento pra portar, né?

- Não. - a vergonha não tinha limite, havia deixado de fazer a lição de casa e corria o risco de perder a sobremesa.

- Seguinte, essa arma aqui, ela era minha e eu to querendo vender. Pra mim ela já fez o que tinha pra fazer. Se eu vendo uma outra pra você, com nota e tudo, posso me fuder. Vou vender pra você por debaixo do pano, te dou um desconto. Mas você nunca comprou essa arma aqui, tá me entendendo? Eu nem te conheço, e se você for pego e aprontar pra cima de mim eu te fodo tá me entendendo, porque eu sei usar uma arma! Eu to te ajudando e não sei por quê.

- Pô, calma, tá certo, nem te conheço. - a verdade é quase se mijou de medo, e para acalmar tentou se convencer de que o vendedor não era realmente perigoso, mas sim uma espécie de pai difícil, que quisesse educá-lo a lidar responsavelmente com as próprias decisões.

- É seissentos paus. E não vai me tirar um cartão de crédito dessa carteira. - o fato é que algumas coisa no comerciante fazia-o lembrar do próprio pai. Talvez o nariz batatudo, o bigode... talvez o sarcasmo.

- Não, não, eu saquei, eu vim preparado. Tó, é tudo nota de 100.

- Tá certo. Te digo uma coisa só, também não sei por que digo. É que eu sei que to fazendo merda vendendo isso pra você - novamente encarnava o espírito paternal -, não importa se tá sendo ameaçado agora, quem tem arma uma hora vai ameaçar. Quando apontar o cano é você que tá ameaçando, tem que tá pronto pra atirar. Não dá pra segurar arma fazendo pose de ameaçado, corre o risco de morrer com tiro dá própria pistola. Se você acha que não dá, tem que admitir que é cívil comum, tem que avisar os homi, tem que fazer diferente.

Prestou bastante atenção e parecia a coisa mais sábia que já tinha ouvido. Em outros tempos, com certeza seria o suficiente para fazê-lo desistir, mas, estranhamente, teve o resultado contrário: sentia-se corajoso. Talvez fosse o efeito residual da febre anterior; talvez também a recente convicção de que para toda grande decisão haveria um risco inerente; ou ainda, algo mais simples e frívolo como a sensação reconfortante daquele ar condicionado. Havia evidentemente a precoce excitação de imaginar-se portando uma arma, mas também não era só isso que o inspirava. A coragem figurava-se como um encantamento perpétuo lançado sobre ele pela novidade, e sobre o qual não tinha o menor controle. A dura observação que fizera da própria vida, quando ainda se convencia de adentrar a loja, fora algo tão inédito e fulminante que é como se ele mesmo houvesse criado esse rio extenso e corrente que o arrastava, sem que pudesse (e embora nem ao menos tentasse) reagir.

Com a arma já assentada sobre as duas mãos, ostentou no olhar uma certeza sem precedentes, confiante de que quando precisasse, saberia usá-la. Dessa vez, no entanto, a violência das novas ideias causaram-lhe uma vertigem que o obrigou a se apoiar no balcão.

- Tá tudo bem com você? - indagou o lojista, preocupado mais com o trabalho que teria caso o sujeito desmaiasse na sua frente.

- Sim - mentiu sem perceber, como se ludibriando as próprias ideias pudesse atenuar seus efeitos colaterais.


Havendo intuído o poder de seu exercício mental, fabricou um antídoto, uma frase infantil que o irritou profundamente em um primeiro momento: todo mundo tem que poder aprender. Mesmo inconformado com a própria imbecilidade, agarrou-se à ideia como que a um tronco no meio daquela correnteza. Era tão estúpida quanto útil: pinçada entre tantas outras que ainda o permeavam, bastou para que ao menos recuperasse o fôlego necessário para se soltar do balcão. Com uma pressa incompatível com seu estado até então, colocou a arma e a munição na maleta de trabalho e saiu em disparada.

Já na rua sentiu o ar úmido de verão e previu que suaria um bocado no caminho de volta.

2 Comments:

Blogger Antônio LaCarne said...

texto ótimo, mal posso esperar pra ler a segunda parte.

abraço.

8:46 AM  
Blogger Luisa Toledo said...

estou me perguntando esses dias o que aconteceu com a continuação... fiquei curiosa...

7:37 PM  

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