23.3.11

Chegada

João estava flutuando com os pés na cabeça quando começou a ser empurrado para fora. Mas, na verdade, já estava escutando aquela animação do lado de lá fazia um tempo. Eram dias? Anos? Desde quando as coisas existem? "Com certeza tudo começou a existir comigo!", a conclusão era óbvia.

E apesar da ideia trazer um certo alívio, o pequeno achou que era cedo demais para ficar filosofando. Também acabou que só deu tempo para uma teoria. No minuto seguinte, a água toda já havia ido embora e ele estava bravo. Mas nada era pior do que as paredes secas que empurravam sua cabeça de quando em quando, pegando ele sempre de surpresa. "Pelo menos eu vou conhecer as outras sacolas.", tentou se consolar.

Nessa, seus pés já estavam sentindo frio. E ele ficou desesperado porque amava muito aquela casa que conversava com ele de vez em quando. Ia sentir saudades. Mas tudo acontecia tão rápido que nenhuma ideia se completava. Em menos de um ano ele já estava todo pra fora pendurado, e João não sabia o que era ficar pendurado. Não conhecia ainda os olhos que agora doíam com toda aquela luz. E já estava ficando sem ar de tão bravo quando finalmente respirou. O ar gelou o peito, e foi muito esquisito porque até então ele fazia esse tipo de coisa pelo umbigo.

Aquilo tudo era muito confuso, e embora João quisesse pedir explicações, só conseguia chorar desconsolado. "Me põe de volta!", ele pensou em dizer para a coisa branca que carregava ele de um lado para o outro. Mas também para um bebê o vocabulário médico é muito complicado. E, de repente, cortaram a mangueira do umbigo. "Pô, eu fazia tudo por aí. Me larga!" João percebeu que era muita coisa pra resolver enquanto ele ainda estava tentando sustentar a própria cabeça que na água parecia muito mais leve.
Então, para seu alívio, um cheiro muito familiar reapareceu. E sua cabeça já estava apoiada, "Ufa!" Quanto tempo havia passado? "Devo estar velho", pensou o pequeno quando abriu os olhos e viu outra cabeça, só que enorme. "Como você aguenta essa cabeça?" João ficou impressionado, e a curiosidade o fez parar de chorar. "Oi, joãozinho!", era a voz da sacola d'água. "Então você existe por fora também? Quer dizer, você não sou eu?" O nenem percebeu que ninguém entendia o que ele queria dizer e viu que ia ter que ter paciência pra ensinar todo mundo a ouvir.

Mas era muito bom estar embrulhado num saco querido, mesmo que agora por fora, mesmo que não fosse mais um saco, mas uma cabeça. "Oi, filho!", agora era a outra voz da sacola, uma mais grave. "Ué, vocês são dois?" João estava mesmo impressionado. O mundo de antes era muito enganador. Talvez fosse melhor assim, conhecer a verdade por mais dura que fosse. João era um filósofo. "Dois parece bom.", João preferiu amenizar. "Eles podem se ajudar, porque eu vou dar trabalho.", concluiu muito satisfeito.

Daí veio algo ainda mais sedutor. Que o encarava, aparentemente sem olhos ou cabeça. Ele encostou o dedo naquela novidade macia e sorriu pela primeira vez em anos. "A gente se conhece? Eu acho que nunca te vi, mas estranhamente sei o que fazer contigo!" João ensaiava seu primeiro xaveco furado. E, logo em seguida, nem percebeu que as sacolas sorriam e choravam, confusas do coração, porque João já estava mamando de olhos fechados.

6 Comments:

Blogger Fabiana Baioni said...

Nicolas!
Você fez todo mundo chorar com esse texto!
E eu, relendo, chorei novamente!
Achei incrível a forma como você colocou as palavras, uma atrás da outra, e deu um sentido tão lindo à chegada do João, que já é uma história linda!

Parabéns!

7:20 AM  
Blogger Nico said...

Que bom Fabi! =)

Uma pena que eu não estava lá com todos vcs.
bjo grande

11:27 AM  
Anonymous Luciana said...

eu chorei tb!

Sou amiga da Mari, estava naquela exposição de fotos dela que você e seus colegas tocaram. Até dancei um pouco aquele dia...

Parabéns! é lindo!

O João já chega numa família iluminada!

9:05 AM  
Blogger Nico said...

ô sorte! =)

9:39 AM  
Anonymous Yuri said...

tá muito bonito mesmo, Nico!

e com aquela dose certinha de humor nicolense, uma maravilha!

5:39 AM  
Blogger Beatriz Barros said...

Foi uma sensação incrível sentir saudades de você, das suas palavras, entrar aqui e ler esse texto.
Obrigada Nico, obrigada por isso se repitir, sempre.

11:32 PM  

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