6.9.07

Retido naquele lar, observava nos móveis as fotos esparsas. Havia uma de quando menino, volteando os entornos do jardim da vó; outra da primeira comunhão, todo crente, de roupinha rara, recessiva entre as demais do armário morto. Aquela casa era uma edição bastante honesta da infância, sentia sem linguagem. O cheiro ainda lembrava uma mistura de pão caseiro e hospital geriátrico, fenômeno que fazia a visita ainda mais complicada. Era impossível caminhar por ali sem imaginar uma panificadora entre os inúmeros quartos de velhos enfermos. Mas aquela casa de troncos escuros, cobertos de umidade antiga, era só silêncio. Sem moléstia e sem pão.

Caminhava entre os objetos tocando tudo com os dedos mimados, como se quisésse retirar-lhes qualquer excesso que se houvesse acumulado no devir dos tempos e, de um mesmo ato, entender-lhes o sentido histórico que permanecia latente, camada após camada de tempo sedimentado em passado. Da sala deslizou até uma porta que dava em um quarto sem luz, mas não quis entrar. Bastou-se em esclarecer para qualquer ente que não estava, de uma vozinha paciente e sem esperança que tonava leve e quase sem brilho:

- Aqui, apanhávamos. - fechando a porta em seguida, amuado entre seus músculos.

Advinhou ao entrar na grande cozinha familiar que as costas alçadas ao lado da pia eram da prima Laura. Uma vez que não havia loiridão mais intensa, tampouco, em toda a família, compleição tão dedicadamente construída. A prima, um ano mais velha, era com quem deitara a libido infantil que lhes arrojava o espírito de muitos anos já tardes. Ensaiou algumas vezes na cabeça a intenção que melhor caberia para aquela hora doída.

- Prima... - escolheu o tom nostálgico que mais o comovia.

Posta ela de frente agora, tornada a criatura mais esquecida do mundo no que diriam os olhos:

- Primo, você veio... - e sentia muito mais do que constatava.

- Vim.

Mergulhavam em seguida naquele imenso vazio que a distância conformava entre dois conhecidos que de repente mudavam. Ainda que este repente tivesse transcorrido os últimos dez anos. Tocaram-se primeiro nas mãos, depois inclinando-se na clave dos ombros, exatamente como a memória acusava o remoto encaixe de seus corpos antigos. Beijou abaixo das orelhas de Laura para nunca esquecer que o erotismo tem em sua graça maior, a possibilidade irrestrita de ser disfarçado em afeto. E choraram profusos aquela inexatidão, sofrendo pelo reencontro caduco de suas parcelas mais juvenis.

- Por que tá aqui na cozinha?

- Decidi acalmar um pouco, respirar esse cheiro que não envelhece.

- Fizeram pão hoje?

- Acho que não. Acho que o cheiro ficou por insistência.

- Quem tá com a vó?

- Minha mãe, sua mãe, a tia Meire, o tio Rodrigo com os nosso primos, nosso tio avô, Robertinha, Dona Leide, e alguns amigos da vó. Você não vai não?

- Vou sim, você vem comigo?

- Vou.

O corredor que levava ao quarto da avó tinha o pé-direito altíssimo e arqueado. Era como se caminhassem em direção à nave central de um templo áspero e sem Deus. A segunda porta recebia os dois primos para caminhar em direção às luzes das velas. Elas que, de fato, pareciam tremulinas solares pousando-se na superfície falsamente líquida das paredes. Mal entraram e os parentes, antes estáteis, já se removiam forçados pela novidade. A mãe, acompanhando as tremuras do fogo, abraçou, em seguida, o filho pela nuca, na esperança de trazê-lo de volta ao útero ancestral de suas angústias. Não se sentia forte o suficiente para tomar a posição da mulher que agora partia. Era, e sempre fora, a filha criada em favor do silêncio. A mais nova e de traços mais clássicos, a pecinha fundamental e dócil de que necessita toda família. Face apaziguadora das dores comuns e inatingíveis. Ninguém ali, de fato, saberia recobrar o senso estrito daquele "não" e tomar para si a autoridade latente da avó. O "não" pairava.

Lá estava a velha matriarca morta. Coagindo os galhos e as folhas a velarem seu tronco podre. O primo Jorge já se ausentava do segundo velório de suas vidas, e a família sempre aceitava os mesmos termos. Jorge estava ocupado em niterói administrando os negócios de que muitos ali dependiam. Acatavam na idéia de que as responsabilidades deveriam mesmo prevalecer no jogo de emoções, e de que a firmeza e austeridade eram símbolos de que a família havia enraizado seus valores. Era sensato que enquanto uns velassem a morte, outros garantissem o que ainda havia de sobrevivência.

Havendo restabelecido o silêncio veloso, um pássaro grande decidiu-se por arrebentar o crânio contra a vidraça principal que acolhia os restos da tarde para dentro da casa. Foi o único momento em que a atenção finalmente se voltara para fora, coisa rara e de instantes. Era preciso fazer entender ao pássaro que aquela estrutura era deveras resistente, e que não se podia tomar de assalto um ambiente familiar por pura ansiedade fugidia. O cimento daquele espaço era a dor dos tempos, e o quarto onde se dispunham era a própria morte. Pensava ele, que penetraria, no ímpeto de suas asas livres, aquele retrato teimoso de antigüidade?

O moço aproximou-se do corpo duro da avó, avaliou cada pedaço de simetria morta, cada detalhe de sua imagem austera, impedida agora de persistir em envelhecer. Caminhou mais uma vez com os dedos mimados a estranheza daqueles braços que seguiam úmidos. Queria entender qual dimensão de valor fazia daquela mulher resoluta obra de tamanho cuidado. Queria penetrar na estupidez da matéria bruta e retirar o que de sagrado morava naquela morte. Trancar as unhas naquele corpo vencido e de um sulco aberto se alimentar uma vez mais daquele vinho rústico.

Via em cada curva, em cada dedo achatado, em cada cicatriz levada ao sol, em cada orifício, e em cada proeminência, em cada passo lento, em cada gemido, o gosto daquele lugar. Em cada tapa estalado no dorso, em cada afeto dirigido ao incesto, um passado anterior ao passado, um passado absoluto, muito mais antigo que a família.

Aproximou-se, então, do ouvido da avó e sussurou cheio de piedade:

- Vó, seu neto é um comunista.

E como se a velha esboçasse qualquer reação de dentro de sua inexistência; como se ele mesmo a escutasse ruir aquela voz grave da garganta opaca. Como se sua mão se levantasse ainda uma vez para recobrar uma ovelha perdida:

- Não vovó, não estou abandonando a família. Não, não estou doente também. Não quero pão, não quero surra. Hoje é o primeiro dia da minha vida, e eu acabo de sair do teu útero eterno.




inspirado em Raduan Nassar,
para Sheyla.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Adorei, é bonito, e triste...
lembrei da minha vó, aliás, q foi faz pouco

11:24 AM  
Blogger Sheyla said...

"(...) eu, o filho torto, a ovelha negra que ninguém confessa, o vagabundo irremediável da família, mas que ama a nossa casa, e ama esta terra, e ama também o trabalho, ao contrário do que se pensa; foi um milagre, querida irmã, foi um milagre, eu te repito, e foi um milagre que não pode reverter (...)"

o teu parágrafo prefeirod é também o meu. porque de você pra mim.

e aqui, saiba, um sentimento bom - o meu pedaço de agora pra você.

obrigada.

1:13 PM  
Blogger Rubis said...

Caralho Nícolas, fazia tempo que eu nao entrava aqui...
Será que quando eu crescer eu consigo escrever que nem voce? Descriçoes maravilhosas.
Como anda a sua vida?
Abraço

2:51 AM  
Anonymous Anônimo said...

li e achei uma beleza(nossa,fui tão simpa´tica nessa que até eu me impressionei comigo..)
bjos

8:02 AM  
Blogger Unknown said...

tanta gente boa comentando...

7:11 AM  

Postar um comentário

<< Home