3.1.09

atrasado

Às vezes acontecia de eu passar toda uma tarde na casa do meu avô. Uma coisa que gostávamos de fazer era jogar dominó na mesa da cozinha. Eu sempre perdia. No começo, porque eu não sabia jogar de maneira inteligente, como ele fazia, mas depois, havendo entendido o sistema de contagem das peças, eu seguia perdendo. Quando penso nisso agora, vejo que eu não sabia competir com meu avô. Gostava mesmo de perder pra ele porque era seguro, porque era um jeito de admirá-lo. E toda vez que ele ganhava mantinha aquela postura serena enquanto olhava pra mim. Nunca comemorava, nunca me humilhava. Parecia reconhecer a vitória já antes, na companhia que oferecíamos um ao outro. Então, ao final da partida, recolocávamos nossas peças ao centro e misturávamos todas, passeando-as sobre a mesa, até que as minhas e as dele eram um só grupo extenso de peças sem dono. Lugar ideal de onde se iniciava cada partida.

Quando o dominó terminava, me oferecia algo de comer e já seguíamos para fuçar sua biblioteca. Eu gostava e, por isso, nunca reclamava de que ele escolhesse o que eu deveria ler. O que fazia, por sua vez, sempre cheio de cuidado. A verdade é que ele não tinha nenhum livro para um menino de 10 anos e, embora soubéssemos, isso nunca nos perturbou. Escolhia um para mim e um para ele próprio, no que seguíamos para a sala. Esta consistia em uma poltrona, onde meu avô se sentava, e um sofá, em que caberiam 3 estranhos sentados ou até 4 pessoas que se gostassem, nesse sofá eu me esticava. Havia também a mesa de centro, repleta de retratos de família dispostos pela minha avó, e uma televisão enorme do início dos anos 80, mas que só ligávamos caso fosse jogo do Palmeiras, para quem meu vô torcia, ou algum outro carioca, a que assistia pra matar as saudades do Rio.

A leitura costumava durar cerca de duas horas, mas esse tempo aumentava à medida em que eu crescia. Enquanto líamos não trocávamos palavra. Não comentávamos. Não penetrávamos a leitura um do outro. Dividíamos não a matéria em si, mas o instante. Com isso, compreendi, não tão rápido, a importância do silêncio, sobre o qual se deitaria ainda a minha música. Meu avô me ensinou a não falar sobre livros, tampouco sobre autores. Escolhia-os para mim, mas permitia que eu os lesse à minha maneira. Afinal, aos poucos, e antes sem se dar conta, eu passava a ler tudo que ele próprio já havia lido. Relia-os em seu lugar. Era o momento em que eu me sentia mais próximo dele. Quando eu decifrava nos livros seu silêncio a meu lado. Daí, ficou pra sempre o sentimento de que a leitura é um tipo de intimidade muito rara. Em que se está nú enquanto se procura despir o mundo também. Para mim, meu avô era um gênio. Mas prefiro não colorir nem explicar essa afirmação. Me encolho por detrás do "Para mim". Aprendi, a seu lado, que a veneração é também uma espécie de intranqüilidade. Ao menos juntos, nunca tivemos a tristeza de experimentá-la.

Experimentei, de outro lado, a melancolia que ele não me escondia. E, tão logo eu já pegasse gosto por ela, veio o Alzheimer pra nos separar. Eu tinha 15 anos e, de repente, me via obrigado a lembrar de tudo por nós dois. Por sorte, nessa época, nosso dominó já não era jogado. O que nos salvou de encarar a dor de maneira ainda mais cruel. Ainda assim, a doença parecia ter sido inventada por ele pra se aniquilar. Como teria feito com a bebida também, anteriormente, caso ela já não existisse.

Lembro de uma precisão que não costumo ter, quando já me obrigavam a ler livros no colégio, de estar lendo Dom Casmurro a seu lado, sem que, porém, lesse qualquer outro livro de volta. A doença já começava a lhe perturbar e ele me indagou sem curiosidade:

- Lendo o que?
- Dom casmurro, já leu?
- Li, mas tanto faz, porque é como se nunca tivesse lido.

Era difícil, na fase intermediária da doença, saber quando era ela que o corroía e quando era ele que a usava pra se maltratar. Nesse episódio mesmo, devido ao tom, que me pareceu irônico em um primeiro momento e simplesmente constatativo em um segundo, não saberia dizer se de fato ele havia esquecido do conteúdo do livro, ou se se forçava a esquecer, só pra dar contorno e dimensão ao mal que o mataria depois de matar suas memórias. Alzheimer era uma metáfora. Uma arma com a qual meu avô se extinguia. Um ser que, por ter sentido demais a dor de exisitr, preferira morrer vazio.

Quando o esquecimento começou a dominá-lo e as indagações se repetiam como se nunca respondidas, comecei a me afastar. Sabia que dali em diante eu ia ter que começar a mentir. Que era impossível ser honesto sem testemunha. Ainda mais porque a postura familiar adotada, penso que naturalmente, era a de dissimular a verdade na esperança de que ele não a percebesse. Formalmente, acho que ele nunca soube que tinha Alzheimer, mas intimamente compreendia. E, por isso também, às vezes parecia um processo de autoabsorção. Um findar-se infinitamente triste. Vivia angustiado a dizer que havia algo de errado consigo. Não queria sair de casa. Não queria estar em nenhuma parte. Tinha medo de esquecer-se completamente e, por isso, apenas o que lhe era extremamente familiar oferecia o mínimo de conforto.

Quase um ano antes dele morrer, já não era meu vô quem eu via. Seus olhos eram um mar sem fundo. Um oculto delírio úmido, cheio de ausência. Nos últimos 5 meses, lembrava de mim algumas vezes, noutras não: precisávamos ser apresentados. Mas parecia sempre uma notícia boa saber que eu era um neto muito seu. Em geral, sorria em espanto e segurava minha mão com grande apreciação. Às vezes, fingia já saber quem eu era, como eu fingia àquela altura conhecê-lo também. Preferia entender naquilo nossa última cumplicidade. Em nome dos velhos tempos, da velha parceria. A solidão, o silêncio, a dúvida: O filho da mãe me ensinara a ser sozinho caso o destino fosse. Tinha raiva de mim e da doença maldita. Não havia prova maior de que Deus não existia. Mas meu avô nunca havia conversado sobre Deus comigo. Então eu fiquei com mais raiva ainda. Porque ele também deixou que eu pensasse sobre Deus sozinho. Talvez para que eu percebesse que pensar sobre Deus é só mais um jeito de estar sozinho.

Quando morreu, foi como a morte é. Impetuosa e necessária. Deixei que morresse sem nunca haver lhe mostrado um texto meu. Nunca tive coragem. Descobríramos cedo (ele tão antes de mim) que os escritores são grandes mentirosos. Embora durante nossas tardes mergulhássemos satisfeitos nas mentiras trepensadas, preferíamos a verdade sobre cada um. Nela se baseava o melhor proveito da mentira literária. Dividíamos, afinal, o gosto em comum de considerar a arte a maneira mais honesta de se mentir. E também a mais bela possível.


....



Dói, meu vô, já quase 6 anos após sua morte, ter conseguido escrever o único texto que faria sentido mostrar.

4 Comments:

Blogger Luisa Toledo said...

Este comentário foi removido pelo autor.

6:39 AM  
Blogger Luisa Toledo said...

Acho bonito esses traços deixados de um avô para um neto, parece que ele deixou para o mundo mais alguma coisa além de filhos, uma herança...como essa que você conta e que está aqui registrada desde 2004...pra quem sabe um dia seu neto ver o que seu avô não teve tempo de ler.

6:42 AM  
Blogger Pedro Pimenta said...

Lindo.
Mexe comigo.

12:57 PM  
Anonymous Anônimo said...

Triste e belo! A memória é o único deleite que nos resta quando a morte está próxima.


Faz tanto tempo que nos temos no orkut e apenas hoje vim passar por aqui, que pecado!

6:25 AM  

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