12.11.04

Topos

Espreguiçam-se nos becos, meninos-sonho; a preguiça inerte que se há tido em viver por estes tempos. O sol nasce torto pela encosta dando-nos a impressão de que se lhe fosse escolha pronta não tardaria em permanecer recluso. Mas feito sol; cose dias mornos nas preguiças infinitas dos homens e em seus intermináveis outonos de secura e solidão. E já não me onera admitir a finíssima tristeza que é dormir em desconfiança da noite, e confiar muito menos no novo dia que se propõe. É abrir os olhos e vir a ter com o sol bojudo, e respirar fundo, e respirar...
É bom tê-lo nascendo, em sua hora e lugar próprios. Tê-lo queimando e só. Sem objetivos perversos em subverter esta rara certeza que me sobra, e que me vem incitar restos de vida pela manhã. É como se o olhasse ao longe, e o fogo me viesse queimar os olhos preguiçosos a me espicaçar por buscá-lo em vida. Ele me tem, e eu o respiro fundo como que se agradecesse por ter-lhe nascendo quente dentro de mim. É feito certo que por aqui neste mundo-pedra me tenho vivo, mas é noutro mundo-nuvem, distante mesmo das letras, onde me encontrarás vivente: livre tropista do que me dizem entre bigodes largos de saberes e empirismos; tão densos bigodes de não-saberes viver, como não o sei eu.
Tantas coisas deste mundo afora que me contam, pois é cá, mundo adentro, onde me perco. E o sol já levantado firme, põe-se hasteado, no céu sem dono da manhã. A persistência das coisas concretas me perturba; perturbam-me ainda mais as coisas outras, em processo contínuo de concreção inútil. Como aqueles que desejam fazer da alma ouro, mas não vêem que a alma não entende o ouro, e que este inexiste no seu mundo. A utopia é realmente inútil para quem a quer concreta. Que beleza outra se não esta dos sonhos, de flutuarem tesos no invisível e de caminharem os homens no desconhecido?
O sol fala-me da noite enquanto caminha para se esquecer de si. E faz-se noite muito antes em mim. Disseram-me da inutilidade da música. Pois não vejo nada neste mundo que me pareça mais ou menos útil. Estão todas as coisas perdidas no mesmo plano, indagando-se de valor que lhes atribuímos em êxtase infantil. No fundo estamos chutando pedras pelo caminho que não nos leva senão a nós mesmos. A música, e as artes todas, são inúteis, concordo. E exatamente por não servirem de utilidade alguma, é que não se valoram, não precisam valer nada. São tão inúteis quanto a alma que não conhece ouro, e não se lhe atribui valor.
O sol se põe, não sem antes me prometer que volta, e eu respiro fundo como que a agradecer pela lua branca que me propõe um céu de estrelas, tão sem dono quanto o céu que outrora me trouxera a manhã. Fico a olhar o mundo através da escuridão que se me expõe. E conto as estrelas porque são inúteis todas, e é inútil contar. A música vem me envolver e revolver em sua inutilidade parca. É estranho estar vivo. Apago as luzes e deito-me atordoado pela inutilidade de todas as coisas. Riu-me com a alma em prantos, ao sentir que a vida busca sentido nestas coisas inúteis às quais me enamoro, com paixão tal que não a saberia dizer senão com a própria alma que chora e me inunda.
Adormeço com um sorriso que não me pertence e nem a ninguém caberia pertencer. Sonho com mundo outro, muito maior. E o sol vem me acordar pela manhã como lhe é de costume: bojudo como ele só. Diz coisa qualquer que não entendo, e queima meus olhos em sono desmedido. A preguiça de viver me expande o peito e os braços, e o sol me amorna o outono sem fim que é existir pra ninguém. Menino-sonho respira fundo, respira...Sorri um sorriso novo do tamanho de Deus, e o mundo se comove diante da inutilidade da vida que insiste em viver.

1 Comments:

Blogger Luisa Toledo said...

"ao sentir que a vida busca sentido nestas coisas inúteis às quais me enamoro"
Te lendo da distância de 5 anos, posso dizer que esse texto é uma das coisas mais inúteis e belas q minha alma reconheceu...dessas coisas inúteis, como ler seu blog todo buscando sentido na vida, às quais me enamoro.

2:29 PM  

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