30.3.10

Pão de Açúcar

Hoje vi um casal discutindo na seção de frios do Pão de Açúcar. Era difícil entender o que os incomodava porque utilizavam aquele sistema de códigos e pronomes indefinidos que impede os espectadores de se inteirar do assunto. Apesar disso, assisti sem nenhuma vergonha àquilo que se montava na minha frente. Às vezes pareciam falar dos filhos quando em seguida se esclarecia tratar-se de cães. Havia algo de relevante naquela discussão encoberta por uma porção de inutilidades. Expressavam publicamente o incômodo latente de haverem unido a própria diversidade, debatendo livremente os assuntos relativos a nossa humanidade.

É impressionante como a variedade de presuntos pode se tornar um problema na convivência. E eu digo isso sem a menor rigidez moral porque costumo ter dificuldade em escolhê-los até mesmo sozinho. O que acontece, basicamente, é que minha personalidade fragmentada opera como um sistema de autocontestação, podendo, algumas vezes, me levar à loucura. Tem dias que acordo totalmente de acordo comigo mesmo, o que não me leva a lugar algum, mas é extremamente agradável. Noutros, porém, é impossível me convencer de mim mesmo. Quando isso acontece, abandono tudo pelo caminho porque se torna igualmente impossível tomar uma decisão, por mais simples que ela seja. Eu sei que é loucura, mas se eu acordo achando que há alguma coisa de errado com o universo, automaticamente me vejo impossibilitado de escolher presunto. Isto e todas as outras escolhas que vêm com o presunto como pão, queijo, chá, namoro, carreira, futuro...Quando há uma dúvida inerente em todas as coisas, não há afirmação que resista, e é consternante como toda escolha é um esboço das escolhas seguintes.

O fato é que brigavam, honestamente. Desejando romper a carne do outro. Comer o bife fresco do outro e se livrar da árdua batalha de escolher. Pondo fim à tortura de acordar ao lado daquele que é, ao mesmo tempo, ênfase de mim e minha anulação. Lutavam para prevalecer naquilo que não davam a mínima importância. Faziam isso porque estavam zangados, porque estavam nervosos. Porque escolheram brigar ao invés de se ignorar pela rua. Porque estavam cansados de se ignorar.

Vendo aquilo me lembrei da propaganda do supermercado onde havia aprendido que o "Pão de Açúcar é lugar de gente feliz". Fiquei na fantasia de aparecerem seguranças para tirá-los dali, inibindo aquele tipo de honestidade socializada. Segui imaginando que logo nos tirariam também, um a um. Constatando que somos, na verdade, pobres infelizes que às vezes precisam de um molho de tomate. Uma cebola para chorar e um dente de alho para abrir as narinas.

O Pão de Açúcar é lugar de gente com conta bancária. A felicidade está tão diluída nas prateleiras que nós voltamos só para sentir o gosto.

4 Comments:

Anonymous Sanitah said...

O problema da escolha seria o medo de errar?
Felicidade em prateleiras porque deixamos de produzir a nossa, culpando a realidade pelos nossos males? Ou a tristeza alimenta mais?
A rebeldia enlatada não seria o incomodo? ou fazer algo com o que a gente vê adiantaria?
bom,sofrer tem que valer a pena.
Pra mim pessimismo é o ponto mais comodo de observação, quando se prefere culpar o realismo por medo de enfrentar os riscos da propria felicidade.

9:18 AM  
Anonymous Anônimo said...

É...
A vida não é perfeita feito "propaganda de margarina"! Infelizmente.

4:31 PM  
Anonymous Luciana said...

"Quando há uma dúvida inerente em todas as coisas, não há afirmação que resista, e é consternante como toda escolha é um esboço das escolhas seguintes".

Bom ler alguém que pensa sobre isso, e que seu pensar toma este caminho. Concordo! Eu não havia dito desta forma, mas assim me trouxe boa clareza. Belíssimo texto. Prazer conhecê-lo!

12:26 PM  
Blogger Nico said...

Luciana, onde vc escreve? Como chegou aqui?

Obrigado pela presença..

beijo grande

10:38 AM  

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