29.3.07

Eu tive três quartos do meu fígado completamente tomados pela bebida.

três quartos do meu salário tomados pelas contas

três quartos da minha vida tomados pelo emprego

três quartos de mim doado ao estado

recebo um quarto apenas

de tudo,

Como se fosse um presente.

No fim, apenas um quarto de mim é meu.

E meu ceticismo me desampara.

É tudo igual.

Se eu fosse muitíssimo católico,

Três quartos de mim serviriam a Deus.

26.3.07

Vão

Por último, decidiram-se pelo degrau, e querendo que coubessem bem, ofereceu o melhor que podia no mais próximo dali: o vão do MASP. Depois de cabidos, acresceram um silêncio de singularidade entre as demais singularidades que enchiam a cara de cachaça no arredor. Com grande heroísmo tentaram dizer da vida longe um do outro. Havia, desde então, a menina afrouxado os freios de si, o menino era quase o mesmo, embolado de mais estranheza das que o mundo de agora dá.
Diego era um terceiro. Psicólogo sem-teto veio dizer da graça de terem um ao outro naquele degrau. Da graça de ter alguém ademais da pinga. “Eu estudei, não era para estar, mas estou na rua”, “Não tenho ninguém” e quis chorar diversas vezes. “Você é especial, não deixa ele ir”, “Eu olho os seus olhos, não há maldade”, “Você também menino é especial, por isso não vai largar ela viu vagabundo!?” e ria. E ríamos.
Não eram um casal. Mas Diego queria tanto que fossem, e o seu discurso era tão repleto de verdade íntima, que decidiram que tudo aquilo fosse verdade. Inspirados pela irrealidade, tomaram a boca um do outro como se uma guerra os houvesse apartado por anos. Estavam casados por um homem triste, e era tão bonito que aceitavam que fosse. Afeitos de uma paixão instantânea, sem vínculo, sem futuro. Unidos pela água benta de um homem da rua.
“Você tem a vida, e então?” Diego aparecia calçado, e continuava. “Vai se preocupar com uma lata?” “Você tem ela.” E ameaçava chorar. “Acabei de ganhar estes sapatos, gostaram de mim e deram. Eu gosto de vocês”. Como haviam de ser felizes por aquele homem! Como haviam de cuidá-lo dentro de si! Embora diante dele, agora induzidos, cruzassem caminhos de novo. “Deus consagrou sua união” e tinham certeza de que o homem falava dele próprio. Um deus magro e moreno, exibindo um vão de onde se esperavam dentes. Mas era capaz de sorrir com uma precisão desumana. “Eu amo você rapaz!” Diego era mesmo emotivo.
Já na escada do metrô diziam nos abraços “Porra, coisas assim não mereciam ser esquecidas”. Mesmo sabendo que tomar um metrô é voltar-se para frente; lugar no tempo onde não existem juntos.