28.9.05

27.9.05

crendice

Dois pássaros cruzaram vôo.

- Acreditas nos búfalos?

- Ora, se não têm asas como nós, e se não voam; se não comem insetos, se não comem vermes; se não pairam o mar, se não lhe furtam peixes; se não planam, se não botam ovos; se não habitam o céu, se não convertem o vento; se não forjam ninhos nos altos galhos das árvores; se não mergulham as penas nos rios pra buscar refresco e se não perfuram, mesmo que raro, os grandes blocos de nuvens: como posso acreditar em algo assim? Não há palavra que digam que eu não desconfie. Como posso acreditar em alguém que só conhece o chão?
Não, não acredito em nada que esteja tão distante de mim; de mim e de tudo que eu entendo como sendo vida.

22.9.05

O hipertricose fez um ano e eu nem cantei parabéns...

não fiquei feliz,
não fiquei orgulhoso,
não fiquei nada...

Na verdade venho achando que eu não sei bem o que é escrever.
E isso é triste.

Já é 22 de setembro e parece até um luto.
mas quem morreu...

Bom, o jazz quase morreu...

Melhor dizendo: o berço do jazz afundou.
E eu nunca achei que isso poderia ser dito ao literal.
O BERÇO DO JAZZ AFUNDOU...
glup glup mesmo...

O neoliberalismo deve ser a melhor coisa do mundo; não duvido!
Mas será que o estado nunca, nunca intervém?
Lá dentro é o que quero dizer.
Porque cá fora parece que eles estão em todo lugar.

4.9.05

Matilde

- Ora, pode passar moça, problema não.
-Eu é que já comi um, direito seu estar.
-Tem importância não, comi eu mesmo um; gorapouco!
-Sobra quê? Damas na frente?
-É seja assim; damas na frente.

Largaram um ou dois pares de sorrisos, intermitentes, por entre as pausas de palavras. O menino vira apenas uma ansiedade de menina, e um passo curto qual pedisse crepe o quão logo. Qual pedisse fim àquela fila. Entendeu que talvez não quisesse tanto quanto ela a que consentiu que pedisse antes. Havia alguma coisa naquela espera; gostaria, fosse um segundo, querer tanto alguma coisa assim; querer com os dentes, com os pés, com os braços. Querer um crepe, assim, com o corpo todo.

- Seu amigo me disse, Biologia foi o que fez?
- Três anos até trocar os bichos pelas notas.
- Mesmo? (sabe... são vivas também...) De onde saem suas notas?
- De uma flauta.
- Olha moça. Acreditar vai não. Mas de uma flauta saem as minhas também.

Fez como que algumas interjeições seguidas de pequenas interrogações, mas logo desistiu. Sabia, assim como ela, que música alguma faria sentido se não repousasse, vez ou outra, sobre o silêncio. E respeitou. Entendeu ser coisa de uma noite meio cinza, achar alguém que distraísse a vida. Que valesse à pena ser sério, ser tímido, ou frívolo, o que fosse.

- Estive mesmo hoje a ver a OSESP, tocar Béla Bartók.
- Estava lá eu também!

E foi, cada qual descansar à sua mesa. Afinal, nenhum espírito agüenta tanta coincidência, sem nem minuto pra fingir sossego. Escutaram as mesmas músicas naquela tarde, e em todo aquele tamanho elegante da Sala São Paulo cada um tinha um lugar marcado, um lugar seu. Pequenas entidades vivas, decididas a se deixar levar por aquele mundo que, do nada invisível, tomava a forma do ar quando os arcos, e as baquetas, e as mãos nuas, e os sopros decidiam contar histórias de sons que liam nos papeis cheios de notas.

-Sei que seus amigos são muito melhores menino. Mas se quiser ficar um pouco com a gente pode vir sim!
-Vou lá agora então; já vou.

E ouviu histórias de pessoas que entendiam a vida de maneira bonita e rara. Coisas sobre Palíndromos e a beleza que tem brincar com eles. Aquilo que corre pra trás. Escutara em algum lugar, mas não lembrava aonde. Lembrava apenas que achara bonito demais, e tão logo já guardava na memória das coisas que amava sem motivo. Mas que amava com o coração todo.

Viu que começava a querer de verdade; bem parecido com o desejo de crepe da menina.Queria saber o que ela e a flauta dela tinham a dizer sobre música. E aproveitou um segundo para contrapor nas palavras:

- Vou pegar a câmera lá no apartamento...
- ...está bem junto da flauta?
- Está sim!
-Acompanho então.

Montada a flauta, os dedos e os lábios da moça pressentiram erro. Mal sabia ela, que quem ouvia não se importava com os erros, queria apenas que tocasse com a mesma alegria bonita que a impedia de ser qualquer. Tocava o erudito.

- Será que não é ruim, a essa hora tocar no apartamento?
- Mas lá embaixo o som é tão alto, e não é tão bonito...

Escutou então um tanto mais antes de tocar alguma coisa. E disse da cerveja porque era mais fácil, mas não sabia se era mesmo ela que causava dormência quando tentava encontrar posição pelo bocal da flauta. E já tocava com os erros como sendo íntimos:

coisa de se consertar eu sei; coisa de se concertar...

Não havia orgulho, não era isso. Era só uma felicidadezinha bem fina, bem leve, em imaginar que aquele som imperfeito vinha mesmo do seu esforço.

- O que você fez com ela? Ta mais leve...
- ...hum...não sei não...

E colocaram a flauta pra dormir. Tinha nome, e tinha explicação. Dorothy o nome dela.

- ...tinha que ser Dó alguma coisa...Sabe? Por ser afinada em Dó.

E o menino sorriu por dentro sem saber se mostrava que sorria.

...

- ...é que o céu dessa cidade é mesmo cinza. Olha, não tem estrela alguma! - o menino lamentava.

E logo depois que ela se foi, reparou uma estrela de vidro girando na janela do apartamento onde estiveram. E teve vontade de gritar, mas pra quem? Não era tão seguro a ponto de ignorar o mundo e só gritar por alegrar-se de uma descoberta; sentiu-se menor por isso.

Era incrível como girava aquela estrela, e como refratava a luz do apartamento. Era impossível estar ali. Era perfeito e era triste. Passara a maior parte dos dias olhando pro céu como a implorar; ou para o chão num lamento infinito...

e admitiu, ressentido de um tempo perdido,
que as estrelas também brincavam na altura dos seus olhos.