13.3.06

Pedalinho

Ela sentou à minha mesa e começou a falar do ex-marido. As traições, as mentiras, os dedos tortos, a mania de polir estatuetas, a coleção de filmes pornôs estrelados por anões e mulheres generosamente peludas. Quando eu ameaçava distrair, reclamava minha atenção segurando-me por um braço e usando o outro para dar pancadas intermitentes na táboa da mesa. E já que tudo aquilo me legasse desconforto, deixei que fizesse pintura do homem até quase inferir sobre o tamanho de sua genitália em estado latente; atitude a que repreendi de pronto.

Como precisasse repousar, tomou de mim o cardápio em euforia estrábica e foi passear as opções com os olhos. Não me faria surpresa, fosse pedir por uma categoria inteira do cardápio ou mascar um pedaço de couro da contracapa por fazê-lo de entrada. Era do tipo de pessoa que escolhe substituições para todos os acompanhamentos, opina sobre a consistência do molho, a temperatura da massa, o cuidado com a carne. Do tipo que pede pra provar as sobremesas só para se certificar de que não queria mesmo nada. E logo constatar, de um falso ar de perspicácia, que sobremesa é coisa perigosa; coisa de engordar o bucho e entupir as veias!

A idade lhe contradiria nas formas. Pois que o rosto e os seios se creíam plenamente jovens e bonitos, enquanto as mãos denunciavam a indiscutível remissão natural de colágeno na pele. Se não lhe imperasse o discurso, facilmente identificado nas bocas curvas e endurecidas das pobres viúvas em desnorte, podería retirar-lhe do passado alguns tantos anos e recolocar-lhes confortavelmente no futuro; mas era fim. Pedira lombo. Da tal maneira em que as viúvas pedem lombo. Esperando algo mais que lombo. Coisa assim que dure, e não esfrie logo.

Acreditei que o fundamento de tudo aquilo fosse dividir quantos poréns tivéssemos. Então arrisquei algumas inferências, sem que com tal intento, no entanto, me expusésse. Algo de sacerdotal que nos enaltece quando de dar conselhos. E sinto-me mesmo virtuoso, e porque não vigoroso, na arte utópica do aconselhamento; sou capaz de traçar a maior das retóricas inaplicáveis e ainda assim receber o olhar inclidado de rosto que rege a sonância lúcida da esperança.

Mas de fato ela pedira lombo. E este chegara marinado em vinho tinto e arroz colorido, com cheiro de coisa verde que eu não sabia bem. O meu era robalo em posta, com vegetais vários e crema de espinafre. Achei alegre que um aspargo dançava no canto do meu prato com o ritmo sugerido pelo ventilador, mas o que sobrava para lá do vidro era uma avenida enorme e uma montueira de prédios consecutivos. Então, fingi que a Paulista era um imenso canal, e dos ônibus entendi grandes barcos de pesca, enquanto os carros me eram pedalinhos. E pouco depois, no horizonte, logo os prédios viraram montanhas, de onde eu e o aspargo fizémos sentido estar.

Eu acompanhava um prato que não entendia. Eu era um aspargo acompanhando não um peixe, que talvez fosse melhor, mas uma posta. Uma posta de peixe. Não fora eu, porém, plantado junto a peixes, quanto mais diria postas. Eu estava perdido, dançando com o ventilador. Uma viúva, posta de viúva. Sem cara, mas boca torta e seca. Enchendo a cara de lombo; atacando o colorido do arroz. Eu era maldito, e ela não sabia. Eu era maldito porque ainda não me distraía em dor.

Foi que pedi um vinho caro e ofereci a ela. Disse que ela deveria viajar, respirar outros áres. Minuto em que encarnei novamente o ar conselheiro.

Por um momento pensei em dividir meu canal de pedalinhos com ela, mas senti ciúmes. Então deixei que bebesse e insistisse em sua dor de seguir viva. E embora soubesse que o vinho ali lhe era vinagre escutei de bom grado porque me distraia na maneira inexpressiva em que seu rosto se havia mudado. Percebendo que a dor lhe vinha apenas da boca e das mãos movediças, e que só se tentara expressar em palavras.

Terminei distraindo-me no colorido que o arroz lhe deixara nos lábios.
Paguei a conta de um dinheiro que me faltaria,

e fui passear no trânsito de pedalinhos.

10.3.06

"Não sei o que me deu hoje, mas eu acordei com vontade de morrer. Nada que uma cervejinha e um bom banho não enganem é claro. Mas e se a água do banho e as cervejas acabarem ao mesmo tempo?

(pensativo...)

- Ah esquece! Isso nunca vai acontecer!

Caminho até a geladeira com os olhos meio fechados ainda. Tudo é tão nebuloso de manhã. Questiono-me até se estou mesmo em casa. Pelo menos a geladeira está no lugar. Abro a porta, abro a lata , tomo um gole longo. Mas que merda, peguei uma Kaiser sem querer, agora sim eu quero morrer.

- De quem é essa merda? - Obviamente ninguém responde. Sente vergonha isso sim! Eu sentiria!"

Vadia

Víbora, vadia e bruxa!
Frígida, maluca e sem escrúpulos!
Se não és vã é por fazer-me repelir-te.

Peçonha e visgo em minha alma
Medonha vóz, medonha face,
Nojo de ti: de teus pudores
Nojo de ti: em teus amores

És a questão de meus sofrimentos
E a razão de meus pesadelos,
Tu és o ócio e todo caos,
És o vazio oculto à alma
És o terror.

Tu és o fogo discrepante à beira-mar
És a volúpia em um amor eterno.
Tu és os olhos que enfeitiçam o homem
E uma vóz pairando o vento.
Tu és momento.

És traição em carapaça viva
E o assombro: um sentimento morto
Tu és moléstia do que vegeta
És toda dor e o recolhimento.
Tu és silêncio.

És tal o cravo na clausura de querer-se lírio
Nosso passado e minha eternidade
És o abster-se de prazer sonhado
Em dicotomia: a terceira opinião
És a face oca da solidão.

Tu és o abalo de um mar infindo
E a finitude de um poente lindo
Tu és o medo de quedar sozinha
És na alegria: uma desilusão
Tu és, maldita, um amor em vão.

Por ti deixado em tão discreto amor,
Há em meu peito um certo arder d'alma
Que te quer morta por amar-te tanto
E te quer longe por querer-te tanto

Ah! Que bruxaria me há feito cego,
De não poder mirar libidinosa alma
Dentro de ti, rameira perversa!
Faz-me livre de assombroso torpor

Para que a tenha um dia nem que morta,
Quero que sintas o sal arder-te os olhos
A afogar-te em tão sofridas lágrimas
Que sintas então o que por ti senti.

bedeis palmareanos (2002)

"- Pra dentro da classe!

- Agora?

- Não, não! Amanhã!

- Tá...

- ...

- ...

- Entra logo muleque!

- Agora?

- Não, não! Amanhã! Droga!

- Tá...

- ...

- ...

- Você não vai entrar mesmo na classe, né?

- Já amanheceu?

- Agora, eu disse!!!!!!!

- Calma, calma, você muda as coordenadas derrepente e ainda grita comigo?

- Como você é chato! Entra na sala!

- Ah, agora você vai ter que esperar, eu sou sensível a mudanças, estou a um passo da imediato-fobia. Meu médico recomenda que todas as mudanças repentinas devam ser primeiro ponderadas para que, daí então, amainado seu caráter imediatista, possa-se seguir por novo rumo...

- ...Eu não vou pedir denovo!

- Sorte a minha então, presumo eu, não sei.

- ...grrrrrrrrrrrrrrrrrrr!

- Posso ver que você também é imediato-fóbica! Mas não se irrite agora! Guarde um pouco dessa ira para quando você se der conta de que a professora está a 10 metros daqui, vindo em nossa direção e que todo seu trabalho foi em vão. E guarde um pouco dessa raiva também, para quando você refletir sobre sua profissão e perceber que você representa a manutenção da ordem dentro da própria desordem. E que isto pode ser um tanto quanto heróico para quem escuta, mas não para quem observa e sente que há algo de errado. Finalmente, guarde sua raiva para todos os dias do ano nos quais você terá de aturar alunos chatos como eu, e guarde também para seus momentos nostálgicos em regozijar-se do passado e perceber que tudo que você fez em toda sua vida "madura", foi ordenar sem pensar por que ordenava, obedecer sem pensar no verdadeiro porquê a que se obedecia, e viver sem saber verdadeiramente para quem se vivia.

- Você é muito cheio de si para sua idade. O que será de crianças como você quando perceberem que podem aprender com os adultos?

- Penso do avesso. O que será dos adultos quando estes perceberem que poderiam ter
aprendido com as crianças? Quem terá mais tempo para recobrar as decepções e os arrependimentos?

Um estuda o outro organiza a desordem, cada um vive o que sente. E morrerá no que sente. "
(...) brilharei no universo rindo ambas; transcendência e futilidade. Como um bêbado andante do nada que tropeça e escarra nos homens. Brilharei com a leveza de um Deus Dionísio, que se acomprida entre as estrelas, e brinca nos dedos os cabelos negros da madrugada.

Sabe se quando eu disse
aquele tudo era mesmo teu?


Não é por mal, sim? mas vai devolve


aquela parte que eu te dei
e que era minha, só minha
de mais ninguém.