31.5.10

Gênesis

Factóide emocionado, combustível de tese,
eis o homem que galga mais um século.
Consumidor como já há muito tempo,
hoje virtual porque ninguém mais aguenta ninguém.
O vendedor não aguenta olhar para o consumidor.
O consumidor não suporta mais o capitalista.
Então, nos disfarçamos todos de sequência binária,
e fazemos tudo na assepsia do lar.
Nós que somos diariamente maltratados pelos fatos,
para que os fatos também nos amparem na dor,
carregamos debaixo dos braços a opinião de cada dia.
Dura pouco o alívio. A verdade na língua, entre os dentes,
ela nos escapa, nos humilha diante dos companheiros.
Escorrega do céu da boca, conhece o vão, nos abandona.
Não importa que tentemos abocanhá-la.

A fome, uma hora chega, cutuca nosso ventre
desapercebida de sua condição de coisa sináptica,
e nos rende automaticamente à sua eficiência.
Comemos hambúrgueres repletos de fatos calóricos,
uma porção de hambúrgueres oncológicos,
e sofremos de culpa porque os bois estão se vingando.
Ficamos revoltados com o fato de que os radicais estão livres
enquanto nós, conservadores, mortos de medo da morte,
sentimo-nos obrigados a comungar na religião antioxidante.
Ingerimos nossas viaturas metabólicas: suco de fruta pequena
chá de saúde, coisa qualquer feita no vapor;
damos uma prensa bem dada no fato oxidante e então...

Estamos poderosos de novo,
estamos vacinados para o amor,
somos arrojados e ocos,
estamos felizes porque nos elogiaram no trabalho,
porque nos sentimos mesmo em casa, somos uma família.
Nosso chefe, uma nova mãe
que nos dá bronca pelo nosso bem.
Ficamos uma beleza nesse vestido novo.
Somos sempre mais elegantes no inverno,
salvo quando estamos morrendo de frio na esquina.
Somos modelos de prova; em nós, tudo se testa.
Estamos cientes do efeito estufa.
Sabemos que há mais bois peidando do que deveria.
Somos extremamente engajados.
Se pudéssemos parávamos de peidar também.
Mas é importante, no entanto, que emerja
sempre que possível, um peido estrondoso
quando estivermos sustentando a pose.
Para podermos olhar nos olhos dos bois
e reconhecer nossa natureza
mesmo quando ela estiver vestida para Miss Universo
opinando sobre assunto de suma importância.
Vestirmo-nos de Miss Universo também, se for o caso,
mas que seja para o Universo, que não julga.

A tristeza, vadia e companheira, retorna impetuosa.
Eu sempre esperando, qual marido obediente.
Ela vem que nem a fome, mas não resolve fácil.
Arrasta o corpo pesado, todo dia tenta.
Penso às vezes no espírito, às vezes na carne.
Fantasma rarefeito aquecendo o tronco.
Penso no fim que tarda a chegar,
no meio caminho andado.
Penso os mil anos de homem sapiente,
de homem parco, homem crente.
Penso na herança, penso no genoma.
Penso no mito.
O mito pensa no meu lugar.

A tristeza evolui, vira outra.
A saudade primeva, mãe da saudade, agora ela é.
Saudade de ter sido macaco algum dia.
De ter comido maçã hipotética no Paraíso.
Saudade de ter ofendido Deus no começo de tudo,
quando ele ainda era presente.
Saudade de não ter corpo.
Saudade das estrelas: minha primeira família.
Saudade de quando a memória era ainda boa e inteira.
Onde eu me lembrava do início de tudo.
Onde o início e o fim não debatiam.
Onde eu estava, somente.
E eu era esse nada, imenso e vibrante
cuja essência era o infinito.

23.5.10

ayahuasca

tesouro da entranha, por mim enterrado, para eu mesmo descobrir.